Stélio Inácio
A ESPERA – Conto Humorístico escrito em 2007
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Tirando alguns apontamentos, meditava eu certo dia sobre a espera, essa travessia da loucura, essa fronteira da vida social, esse vázio, esse encontro inevitável connosco mesmo; e como todas as meditações abstractas, parvas, inúteis e não aborrecidas só para quem as tem, esta acontecia no momento em que eu estava na casa de banho, sentado na pia e a espera de acabar os negócios de Estado que ali me traziam. Ou seja, numa das mais típicas situações de Espera, pela qual todo ser humano, e não só, tem de passar. Segundo o que me lembro e o que escrevi naquele dia, uma das minhas idas mais divertidas a casa de banho, inesquecível até, essas meditações começaram assim:
I
É muito esclarecedora uma caracterização que eu já ouvi de uma situação de Espera: “estar pendurado”. Quando ouvi pela primeira vez esta expressão não resisti e comecei a imaginar, a vizualizar essa situação. Veio-me a mente a imagem de um grande estendal por cima de todas as cidades de todo o mundo, onde as pessoas que estão a espera de alguma coisa ou de alguém ficam penduradas pelas orelhas, aparvalhadas, aburradas, enquanto as pessoas livres do mal da espera circulam normalmente por baixo delas, até que chegue a sua vez de irem também ficar penduradas nesse grande estendal humano.
É como se de repente, em plena vida social e mundana, aparecessem literalmente reticências seguidas dum impeditivo ponto de exclamação a nossa frente, e isto enquanto os outros transeuntes deparam-se com vírgulas (que diga-se: parecem estar em todo o lado), pisam pontos períodos e caem sobre um ponto paragráfo esquecido inadvertidamente sobre o soalho, são levantados pelos poderosos guindastes que são os pontos de Interrogação, vão almoçar no restaurante ponto e vírgula, encontram-se e conversam com o professor dois pontos, indentificam-se perante o inspector hífen, confessam-se, são sinceros ou explícitos, mais só entre parentesis, conversam através do canal de comunicação travessão que funciona como se fosse um telefone. Alguém pega no travessão põe a sua frente e diz:
— Olá.
Um outro, onde quer que esteja, pega no seu e diz:
— Tudo bem.
Ou coisa que se pareça com isso.
Passam por pontes chamadas entre aspas, tão distantes das outras vias, que lhes dão a sensação de estarem a voar sobre tudo. Enfim, enquanto tudo corre bem, enquanto a sinalização flui normalmente, lá estamos nós a olhar tudo passar, barrados por reticências seguidas de um grande e impeditivo Ponto de Exclamação a nossa frente…!
Eis a Espera, esse sinal vermelho de todas as estradas da sociedade, congestionadas ou não.
II
Um caso clássico da Espera é a bicha.
A primeira coisa de que devemos ter em conta numa bicha, é o tipo à que ela pertence:
Há as Milagrosas:
Acabam rápido e bruscamente, como se as nossas preces tivessem sido ouvidas.
Há as Amaldiçoadas:
Quanto mais perto estão de terminar, mais aumentam com elementos fantasma que surgem do nada.
Há as em Repouso:
Estão tão paradas como os seus elementos.
E finalmente, Há as Normais:
Corre tudo bem até que algo de anormal aconteça, o que não raro sucede.
Na bicha, quem reina é a expectativa:
—Mais três pessoas e é a minha vez.
Há aqui uma espécie de descarga emocional que constitui a cura natural à depressão que a espera produz.
Mas o pior é quando estamos numa bicha amaldiçoada:
— faltam três e é a min…
— Desculpe-me, — Alguém intorrompe o nosso pensamento. — Eu sigo a este senhor aqui na sua frente.
— Tudo bem.
E agora pensamos:
— Mais quatro e é a min…
— Desculpe-me, — De novo alguém interrompe o nosso pensamento. — Eu sigo a esta senhora. — E explica isto ao segundo da bicha que simplesmente consente.
De forma similar, surgem mais uns quatro elementos fantasma.
Mas uma coisa eu advirto, nunca nos devemos zangar com essa coisa de haverem elementos fantasma, porque caso os queiramos imitar podemos provar da maldição de imitar a bicha amaldiçoada, também conhecida pelo prosaico nome de fazer papel de parvo. Está sempre presente na minha memória o caso que se segue:
Um sujeito que já sofrera muito de bichas amaldiçoadas, resolve agir como um elemento fantasma e saindo da bicha, diz gentilmente a alguém que estava a sua frente:
— Sigo a si.
Abandona a bicha e vai tomar um sumo, após o que vai ver algumas montras e ainda aproveitou para comprar o jornal. Quando regressa verifica que deu-se um fenomeno raro, a bicha por algum período, justamente aquele em que ele se encontrava ausente, transformou-se numa bicha milagrosa. Segundo as suas previsões menos optimistas só deviam ter sido atendidas umas sete pessoas naquele período, mas foram atendidas quinze; e justamente quando ele constatava pasmo esta dolorosa realidade, acabavam de deixar o local, atendidos de fresco, tanto o sujeito que ele seguia como o que seguia a ele.
Olhou para a bicha e notou que apesar do raro fenomeno, agora extinto, esta tinha crescido um pouco mais. Não teve coragem de ocupar o último lugar. Não teve coragem de ir ter com o primeiro da bicha. Foi então ter com o terceiro e mentiu de boca cheia acreditando ser assim que os elementos fantasma, que tantas vezes o tinham enraivecido, prosseguiam:
— Eu sigo a este senhor a sua frente.
Quase sussurou o sujeito, mas o dito senhor que podera ouvir esta declaração, virou-se e disse convictamente:
— O senhor mente.
E a partir daí todos, a quem a espera tivera afinado os sentidos de modo que até os últimos da bicha viram e ouviram perfeitamente a cena, descontaram o seu aborrecimento com a presente lentidão da bicha no sujeito. E não houve piedade. Os da frente limitaram-se a chamá-lo de mentiroso e sem vergonha, mas quanto aos da parte traseira, quase o lincharam de palavras insultuosas e ofensivas; e as pessoas comentaram de forma doentia e até absurda durante duas gerações daquela bicha, a história heróica da bicha que venceu o impostor, passou de pais para filhos, ou melhor, dos mais antigos da bicha para os recém chegados.
O sujeito que simplesmente não a podia abandonar teve que ficar na bicha como monumento vivo da dita vitória.
As pessoas, apontavam-no e diziam:
- Foi aquele senhor.
E havia dos novos quem fazia a peregrinação de trás para frente ao longo de todo o progresso da bicha, só para ir ver o impostor e regressar, uma peregrinação que eu defendo não ser inferior em fé, determinação, coragem e amor a verdade a de um religioso convicto.
Contudo, o nosso sujeito lá teve a sua vez, e foi para casa com uma lágrima pendurada em cada canto do olho: nunca esperara tanto, nunca se sentira tão evergonhado e nunca ficara tanto tempo de pé.
E o caso das bichas normais:
— Duas pessoas e eu sou a seguir.
É quando reparamos num clima pesado sobre toda a atmosfera do lugar, e um pressentimento vai se tornando cada vez mais real até ficar totalmente impositivo:
Algo está a correr mal.
O computador tem um problema desses que só um perito pode resolver, e o pior: o perito saiu mas pode voltar a qualquer momento; a máquina à que queriamos aceder foi abaixo, e o pior: foram chamar sei lá onde o técnico que a vai reparar; o produto que queriamos adquirir simplesmente esgotou, e o pior: alguém foi buscá-lo no armazem que fica sem lá onde, enfim, temos que esperar numa bicha em repouso quem sabe por trinta minutos ou até mesmo uma hora, se nos for imprescindível o produto, ou o serviço, e sem que uma única pessoa seja atendida. Mesmo que sejamos o primeiro da bicha, a nossa angústia não é menor. Provamos de todos males da espera e quanto mais a frente estamos de uma bicha em repouso, mais nos custa abandoná-la.
Quanto aos elementos da bicha, os que estão a espera da sua vez, na maioria dos casos e tendo em conta os tipos de bicha supracitados, tem a mais dolorosa das tarefas que é nesse tempo de espera que se caracteriza pelo vázio mental, buraco negro da existência, vácuo da vida social, momento narcísico e outros termos de difícil digestão, capazes por isso de causar uma prisão de ventre intelectual, um pouco semelhante a prisão de ventre estomacal que me prende aqui, o elemento da bicha tem a dolorosa tarefa de encontrar uma tarefa, algo para fazer que amenize a espera.
A primeira dessas tarefas é por os pensamentos em dia, o que é algo perfeitamente normal e até saudável, mas o mal sucede quando esses pensamentos já estão em dia ou quando
depressa o ficam, acontecendo assim a desertificação da mente, e é precisamente daí que surge a segunda tarefa: encontrar um pensamento.
E nada nos escapa: é um insecto minúsculo que é aumentado pela lente do vázio mental pelo menos umas três vezes, de forma que finalmente reparamos nele, atacamos as unhas, essa espécie de brinquedo natural do ser humano, lembramos de coisas insignificantes que nos temos prometido ou pretendemos fazer à meses e que não nos lembrariamos em nenhuma outra circunstância:
— Tenho que mudar a posição da minha cabeceira. Ou
— Tenho que fazer uma visita a minha sogra.
Procuramos uma leitura qualquer, o que nunca dá certo, uma espécie de incompatibilidade do conhecimento com o vácuo mental, e depois são as mil e uma teorias e sugestões para acabar com o mal da espera.
A terceira das tarefas dos elementos da bicha é muito simples: falar.
Até os mais tímidos, até os menos sociais falam verborosamente nas bichas, desde que se lhes dê a mínima oportunidade: quem quer ficar sozinho consigo mesmo no vácuo da vida social? Quem quer estar entregue aos seus pensamentos numa situação de angústia da espera?
E os elementos da bicha parece que ficam automáticos. Começam com uma espécie de aquecimento, a ignição:
— Ish!
— Ia!
— Puuxas!
E depois aventuram-se:
— Isto está mal!
E uma resposta sempre surge dum outro elemento também em estado avançado de aceleração motorizada:
— Ia! Isto está muito mal!
— Eles deviam tomar providências.
A máquina encontra-se agora em franco aquecimento:
— Sabes, nos outros países.
Essa magnífica frase: ‘’Nos outros países’’, há quem localize o paraíso terrestre nessa região mítica e sempre procurada pelos homens de todos os países do mundo: ‘’Nos outros países’’’.
E depois uma conversa que tende para o nada, surge do nada; e assim como nada na água o peixe podemos dizer, um nada exagerado, que este tipo de conversa nada no nada que somos na espera, é o motor a todo o gás.
A quarta tarefa, que é a princípio a mais ingrata de todas, é a de vigilante. Essa é uma daquelas vocações universais: todos possuimos o dom.
Até aqueles que concedemos, durante o companheirismo da bicha, um pouco da nossa simpatia, não se vêem excluidos dessa nossa guarda.
E uma das melhores coisas da vigilância, qualquer que ela seja, é o flagra. Descobrir a infracção faz nos experimentar um desses prazeres sadomasoquistas que ainda não foram cabalmente explicados pela psicologia ou qualquer ciência que se ocupe das coisas do espiríto. É
o mesmo prazer que as vezes experimentamos quando descobrimos um motivo de zanga com uma pessoa a quem não vemos com bons olhos, é um desses mistérios da alma, daí que a vigilância seja até uma das mais leves tarefas dos elementos da bicha.
III
Mas existem outras vigilâncias que não são assim tão agradáveis. A que praticam, por exemplo, os seguranças e guardas de um estabelecimento qualquer.
São normalmente oito horas diárias de pura e bruta espera. Oito horas diárias da mais pura e bruta espera.
Oito horas.
A alienação que isto provoca é fora de série. Talvez por isso não seja de espantar o poema que eu vi escrito, moldurado e pendurado na parede de uma agência de segurança a tempos. Lembro-me das palavras do poema, por tê-lo copiado e lido tantas vezes:
Não desejo que a espera seja leve, Que seja curta, que não persista; Pois só desejo o que desejo:
Que ela simplesmente não exista.
Não desejo que o meu substituto Venha sempre pontualmente,
Cada atraso dele, quero bem perceber, Para poder imitá-lo perfeitamente.
Que nunca me faltem aventuras, Nem o ladrão, meu inimigo; Porque nas noites frias e escuras, Só ele estará comigo.
Antes me falte o pão que a acção,
Antes me falte o agasalho que um entretenimento, Antes o ladrão que a solidão,
Antes tudo que o aborrecimento.
O ladrão é sim ímpio e maldoso, Mas antes mal-acompanhado que só, A solidão é algo perigoso:
Nem coração tem para ter dó
A minha profissão é de muito amor E eu sem hesitar sacrificaria a vida, Mas só por aquilo que mais respeito: A tão gostosa hora da saída.
Penso nela no meu local de Trabalho A cada minuto, a cada segundo;
E quanto mais a vejo aproximar, Assobio canções de amor profundo.
E é amar-te, ó hora sublime,
Que é a minha verdadeira profissão, Desejar-te intensa e fervorosamente De toda a vontade, de todo o coração.
E lembras-te do nosso matrimónio, Na rua deserta, na catedral solidão; Fomos apadrinhados pelo rígido frio
E pelo grande ausente da noite: o ladrão.
IV
Há vezes que ficamos horas só a espera da hora da saída. E isto em quase todas as profissões. E quando não há nada para fazer… E quando o patrão está ausente…
É a hora universal da preguiça, a guerra dos bocejos, o namoro com o relógio.
E os comentários sobre a política, o desporto ou sobre um assunto que esteja na moda na altura…
Esses assuntos são sempre comentados de uma forma muito estranha: em Actos. Eis está conversa entre dois colegas de trabalho:
O Assassínio d ‘A Conversa.
Tragédia em 5 Actos
Personagens
Bruno – Colega do Sérgio Sérgio – Colega do Bruno A Conversa
O Silêncio
Um Coro de Vento
- Acto
(Entram Sérgio e Bruno, no local de Trabalho) Bruno: A nossa equipe poderia ter ganho. Não mereceu aquele empate.
Sérgio: Falhou muito. Aquele avançado falhou três vezes, como é que se chama…? Bruno: Aquele ali nem…
Sérgio: Iaaaa… Esse mesmo.
(Longa pausa. Os dois bocejam, recostados nas cadeiras dos seus respectivos postos.
Passam uns 15 minutos de pura inacção. Os actores retiram-se. Desce o pano)
- Acto (Sobe o pano)
Bruno: Iaaa. Poderia ter ganho.
(Passam uns 20 minutos. Bruno bate os dedos na mesa continuamente. Sérgio bate com a nuca no espaldar da cadeira. E desce o pano)
- Acto (Sobe o pano)
Sérgio: A nossa equipe é a única capaz de sobriviver na Liga dos Campeões Africanos. Bruno: Sem dúvida. E vamos ganhar o campeonato.
(Toca o telefone. Bruno atende com um sorriso mais do que falso. Era engano. Sérgio dorme a olhos vistos. Bruno olha para o relógio, vira logo a cara como se tivesse visto a própria morte. Tenta imitar o colega, ou seja, tenta dormir. Passam-se 45 minutos, até que Desce o pano)
- Acto (E ele sobe)
(O pano é claro) Sérgio: Este ano vamos ser campeões.
(Diz ele que pretensiosamente estava a dormir, despertando Bruno do mais profundo sono alguma vez sintonizado no local de trabalho)
Bruno: Iaa. Iaa, é verdade, é assim mesmo.
(Regressam os dois ao sono. Passa-se uma hora. E desce, já sabe o quê)
II Acto
(E sobe, aquilo que sabe que desceu. Eu não vou estar para aqui a repetir a palavra pano. Além do mais nem sou pago, o narrador nem é contado numa peça teatral. Ou quando existe, é muito mal pago, sob a alegação de que trabalhamos pouco. Portanto não reclame, vá ver a representação da peça que é a melhor forma de a compreender. Ari! Chiça! Como dizia a minha avó.)
(Ambos despertam, simultaneamente. Por um desses pressentimentos mágicos. É que faltavam só 20 minutos para a hora da saída e para fecharem o estabelecimento. Toda lucidez volta, num desses raros mais frequentes fenómenos de regresso do coma causado por consumo excessivo de um estupefaciente chamado ócio. Olham ao mesmo tempo para o relógio. Faltam agora 18 minutos. O patrão não voltou ainda. Olham-se. Estão de acordo. Fecham o estabelecimento e matam impiedosamente a conversa que os alimentou – ou que eles alimentaram – durante grande parte do dia. A sangue frio, sem qualquer hesitação. Começa a crueldade por um deles)
Sérgio: Nós vamos ganhar o campeonato e chegar pelo menos aos quartos de final da liga dos campeões Africanos.
(Foi o primeiro golpe. A conversa vacila e cai. Vive ainda. Rasteja na tentativa de afastar-
-se dos assassinos. Estes a perseguem, por pura maldade. Querem ter o prazer de matá-la completamente)
Bruno: O nosso treinador portou se mal naquele jogo, mas é excelente.
(Com este golpe, Bruno atinge o coração da conversa. Um golpe breve e certeiro. A conversa cai e morre sem soltar um gemido. Neste momento Bruno e Sérgio trancam os portões.)
Sérgio: Até amanhã. Bruno: Até amanhã.
(Seguem por caminhos diferentes. Os dois actores saem e fica só a conversa caída no meio do palco. Morta. Ouve-se alguém aos gritos, gritos ensurdecedores. É o silêncio. Uma procissão de cantores que compõem o coro do vento faz o séquito ao corpo da conversa que é difundida no ar e perde-se para sempre, para nunca mais. Cai para não subir mais e a audiência retirar-se, o aborrecido adereço teatral que marca o inicio e o fim de um acto, cujo o qual eu já estou cansada de referir. É o fim da peça.)
N.B.: A senhora que narrou a peça, além de fazer parte de um grupo teatral sempre no papel em branco do narrador, é recepcionista numa instituição pública.
V
O meu telefone está a tocar. Já constitui um hábito para mim levar comigo o telefone quando vou a casa de banho. As vezes divirto-me entretido em jogos de telefone só para passar o tempo, mas isso principalmente quando a estadia, como hoje é o caso, a este santuário onde todos somos sacerdotes, promete ser longa. É o meu primo que esta a telefonar-me. Há muito que não o vejo.
Alo Primo tudo bem…
Eu estou mais ou menos… Sim…
Sim…
Não me digas… Onde…
Estou a ver…. Sem dúvida… Aié…
Mas a que se deve isso… Sim…
Sim… Hum Hum…
Huuuummmm… Hahh…
Hahhh… Haaahhhhhh… Não…
Não…
Naa… Naaaaaaa… Com certeza… Aié…
Talvez…
Talvez…
É provável… Quem duvida?
É terrível. Não há a possibilidade de ires por outra via… Sim…
Tens razão, e o pior é que é uma estrada muito estreita… Mas deixa-me visualizar esta situação: Tu estás aí sozinho no carro num dos maiores congestionamentos da história desta cidade, e simplesmente porque não tens nada para fazer ligas para mim, o que não fazias a meses, só para fugir a constrangedora e aborrecida situação de estares aí a espera sem poder fazer absolutamente nada e estás para aí a falar e a falar, e como se não bastasse ainda perguntas- me, com todo o desejo de saber: “E tu, o que estás a fazer?’’ Acredita Primo, tu não queres mesmo saber o que eu estou a fazer, não sou eu quem vai te entreter enquanto estás aí a espera, procura outro. Até mais.
Este meu primo! Mas eu até lhe perdou. A espera no trânsito constitui um dos casos de espera mais dolorosos de que a notícia na terra. O espaço exíguo e fechado do automóvel, ainda que com todo o conforto, acaba sendo uma prisão. Imagine-se uma fila enorme de automóveis e um deles é o nosso, não podemos ir nem para frente nem para trás e nem podemos abandonar o nosso automóvel a meio da estrada por causa das várias implicações que isso tem. Essa prisão dentro do nosso próprio automóvel é de loucos. É de notar que um dos maiores efeitos da espera é a loucura, ainda que seja uma loucura éfemera. Porque nos deixando a margem da sociedade, a espera dá-nos a possibilidade de observá-la, o que é mau, porque a sociedade não foi feita para ser observada ou apreciada, mas sim, usada e desusada.
Mas voltemos ao nosso congestionamento, estamos ali no meio da estrada, no meio de uma enorme população de automóveis, a espera e a espera, as vezes com a intenção de simplesmente dobrar a esquina, o que poderiamos fazer com os nossos próprios pés em menos de cinco minutos, mas temos que esperar ali sentados, confortavelmente ou não. E é justamente quando decidimos para matar o tempo, paremos um pouco, reparem nesta expressão: matar o tempo, essa é uma dessas expressões vingativas da linguagem humana, tem mais significado do que aquilo que realmente expressa, é dessas expressões que nós mais sentimos do que compreendemos, como o amor. Perdoem-me este desabafo poético, sentimentalista até, mas que querem? de romantico e de poeta todos temos um pouco, eis outra frase poética devem ser as minhas dores intestinais que estão a trazer-me esta vaga de inspiração, afinal poeta sofre, e se o poeta sofre só com a melodia da voz amada que lhe traz o vento, e isso inspira versos, imaginem o efeito de uma revolução estomacal.
Continuemos.
Eu dizia que em pleno congestionamento, é justamente quando decidimos para matar o tempo, sem comentários, dormitar um pouco, que ouvimos uma buzina que cai sobre nós como um martelo na cabeça, seguida de uma enxurrada de insultos, que no mínimo envolvem umas três pessoas queridas da nossa familia. A estrada já está descongestionada, mas reparem, nós não cometemos o erro de não ter notado isso, mas sim, o erro de nos termos tornado o bode expiatório da raiva e da depressão acumuladas durante aquela situação de espera.
E é de realçar que o automóvel tem um meio de comunicação próprio: a buzina. Merece um estudo o facto da buzina, que é ordinariamente composta de um tom, produzir uma linguagem que não fica muito aquém da que é produzida pelos 12 tons da escala musical.
Se não existem, creio que não tardarão dicionários da linguagem buzinatória, ou mesmo cursos nas escolas de condução que se ocupem inteiramente desta matéria. Dá para imaginar o instrutor revestido da sua doctoral sabedoria dizer ao seu aluno:
— …Se quiser por exemplo insultar a mãe do motorista que fez uma manobra que colocou em risco a sua vida, e, o que não é menos, o bom estado do seu carro, basta soletrar com a buzina as palavras do insulto de sua perferência, demorando-se para efeitos de maior expressividade na sílaba tónica da palavra mais insultuosa para bem a realçar. Além do mais basta ter em mente o m.e.r.d.i.e. (metódo educativo e recriativo de discutir e insultar na estrada) ou basta ter em mente a lei fundamental: Uma buzina prolongada mais de 3 segundos é sempre um insulto ou uma manifestação de desagrado. Esta lei que também é conhecida pela lei da conversão da buzina em buzão (= buzina insultuosa). E também não nos podemos esquecer da segunda lei: A um buzão injusto devemos sempre responder de forma elegante com um buzão mais injusto ainda. Eu já frequentei as maiores estradas buzonadas do mundo, já bati-me com os maiores buzos deste planeta. E conheço esta ciência como poucos. Meu caro discente, a buzina tem de ser o prolongamento do corpo do motorista. Não importa o grau de instrução, não importa a educação que se tem, a buzina revela o animal que há em nós. A história da buzina é quase tão antiga como a do automóvel. Na organização hierárquica das peças do automóvel, nós temos primeiro as rodas, o acelador, o volante, a buzina e depois o travão. A buzina esta para o automóvel como o rato está para o computador…
E por aí adiante seguiria o nosso Dr. Buzo. Não quero nem tentar imaginar qual deve ter sido a sua tese de doutoramento.
A pior das anarquias que uma sociedade pode temer, é a anarquia nas estradas. Mas quando essa anarquia chegar e quando se instalar uma batalha rodoviária que poderá até atingir proporções mundiais, todo o automobilista estará armado, e do quê, da buzina, ou mais exactamente do buzão.
E é nessa época glória da buzina que veremos surgirem inovações como a buzina metralha, capaz de distribuir uns 10 buzões por segundo em todas as direcções. Ou a buzina atómica: um buzão gigantesco, audível em toda a cidade e quem garante que as explosões pretensiosamente dos paióis que ocorreram em Maputo, no ano de 2007 não eram um ensaio, uma experiência com a buzina atómica, talvez Moçambique seja um percursor dessa tecnologia de ponta, a história do Paiol teria sido uma encenação, um disfarce. Além do mais é de notar que Moçambique detinha até a data dessa experiência um dos cenários rodoviários mais instáveis do mundo, com um grupo de anarquistas conhecidos como os chapa-cém, que já vem travando batalhas históricas.
Mas é de realçar que a buzina é um fenómeno mundial e se fosse o nosso cônjuge, seria o cônjuge ideal, não seria aquele que berra para nós, mas sim, aquele que berra connosco. A sintonia perfeita. E há que ter em conta que a buzina é o nosso salva-vidas; quantas pessoas foram salvas por uma buzina, nas mais diversas situações.
Portanto, a relação que nós temos com a buzina pode ser descrita usando estes termos tão nobres e elevados:
Igualdade de Genéro – Não se distingue se a buzina veio de uma mulher ou de um homem.
Igualdade de Direitos e Oportunidades – Quem distingue a buzina de um político da de um desempregado.
Até que a morte nos separe – A buzina acompanha-nos com a mesma fidelidade desde que com ela nos casamos, normalmente aos 18 ou 21 anos, até praticamente toda a nossa velhice, o que vem portanto corroborar a teoria segundo a qual ela constitui o cônjuge perfeito.
VI
Lembra-me agora o caso de um jornalista que tendo combinado um encontro com o seu editor para lhe entregar uma crónica, teve que esperar por ele numa pastelaria da cidade de Maputo. A crónica tinha de ser entregue nesse mesmo dia porque era dia de fecho da edição do jornal.
Tinham combinado para as 14 e 25.
Após dez minutos da mais impaciente espera, entre roeres de unha, bocejos e aquele sentimento de orgulho e soberbia que o fazia repetir no íntimo a frase: “Amanhã publicarei a minha primeira crónica no jornal. Ela estará em todo o país com o meu nome” .
Ora após esses dez minutos o nosso jornalista liga ao editor que lhe garantiu que iria ao seu encontro daí a 20 minutos, e que tudo era devido a alguns imprevistos terminando com a frase a que só ele achou graça: “Sabes como é – Horário Moçambicano”.
Mas enfim, que fazer, oito minutos após esta explicação e este comentário o jornalista até começou a achar graça: “Horário Moçambicano” pensava”Eis a justificativa que nós Moçambicanos usamos para um atraso injustificável”
Ora 25 minutos depois o editor ainda não tinha aparecido e nem sequer havia mandado uma mensagem a justificar o novo horário. O jornalista, agora visivelmente irritado, voltou a ligar, ao que o editor respondeu com um lacónico e peremptório:
— Desculpe-me, só agora consegui libertar-me de alguém com quem tenho uns negócios.
Estarei aí em 30 minutos é que estou na Matola, até já.
E desligou deixando o jornalista a repetir automaticamente…
— Até já…! Até já…! Até já…! 30 minutos, e até já…!
Acabrunhado e sentindo-se totalmente humilhado, pensou em voltar a ligar e mandar o editor para o sítio que segundo a sua própria opinião, ele bem merecia ir, mas conteve-se.
Pediu um refrigerante.
Enquanto pensava numa desfora, como ir-se embora sem cumunicar ao editor, viu acontecer-lhe um fenómeno no mínimo espectacular: A raiva que ele sentia foi aumentando cada vez mais, primeiro fazendo-lhe dirigir muitos insultos ao editor, depois sentiu uma vontade incontrolável de ter uma vingança a altura da desfaçatez do editor. Ouviu uma vez dentro de si que tinha um tom malvado: “Escreve uma crónica”, dizia-lhe. 10 segundos depois fez um gesto com a mão e com o corpo como quem acaba de ter uma ideia:
— Vou escrever uma crónica sobre esse desprezível “Horário Moçambicano”
Tirou da sua pasta o computador portátil que levava sempre consigo. Ligou-o e abriu o editor de texto.
A inspiração era tanta que durante toda a redacção da crónica nem sequer parou para pensar em novas ideias, despejou tudo o que sentia, da forma bruta em que as ideias apareciam, sem florear sem sequer limar. Despejou tudo com um riso escancarado na face, era o divinal sabor da vingança.
E eis o que o nosso inspirado jornalista escreveu, ou melhor dito, eis o que a espera, esse vácuo da vida social que precisa ser preenchido ou nos maltrata lhe ditou:
O Horário Moçambicano
Existem sociedades em todo o mundo que fizeram do atraso uma dessas infantilidades ou incosequências que praticamos na primeira infância; algo como levarmos os óculos de um parente mais velho e ficarmo-nos a rir da sua preocupação, da sua fraca habilidade para correr atrás de nós e o que é mais, da sua cara amedrontada quando ameaçamos atirar os tais óculos ao chão ou a uma bacia com água que tivessemos por acaso ao lado.
Existem sociedades em todo o mundo que fizeram do atraso uma dessas garotadas que praticamos na adolescência e de que, com tristeza tenho constatado, alguns de nós nunca se arrepende; algo como entre colegas de escola, combinarmos esconder a pasta de um colega tímido e ficarmo-nos a rir da sua preocupação e rirmo-nos ainda mais quando onde ele não nos possa ver, ridicularizarmos as lágrimas que começam a cair dos seus olhos, tudo para depois um de nós ir dizer-lhe que a pasta dele está no caixote de lixo e que não fazemos ideia de quem lá a tenha colocado, e rirmo-nos agora a frente dele ao ver-lhe ir ao dito caixote e recolher a sua pasta
e rirmo-nos enfim da sua cara que ele tenta esconder de tanta humilhação e rirmo-nos mesmo que não façamos parte do grupo que organizou tudo isto.
Existem sociedades em todo o mundo que fizeram do demoníaco acto de pôr os outros a espera, como se de seus lacaios se tratassem, algo tão pernicioso, tão errado, tão desumano, como um desses fenómenos sociais que aparecem em certas sociedades ditas civilizadas e que consistem em cometer actos bárbaros que até denotam um ínfimo grau de civilização, ou a civilização recuada milhões de anos atrás. Foi o caso da escravatura que durante séculos espizinhou e tirou toda a dignidade humana ao homem Africano que era classificado segundo os padrões duma sociedade que hoje é a de todos os homens ocidentais, de homem inferior e animal, incapaz de se organizar em sociedade ou de simplesmente pensar enfim ou mesmo o do regime nazi que tinha a crença de um homem superior, de sangue e raça pura, ou da sociedade Ruandesa que era dominada por uma etnia que queria eliminar a outra acreditando nesses mesmos princípios, esses princípios que desde que o homem é homem tem causado tantos conflitos. Esses princípios contrários aos valores que hoje preconizamos: aos valores da fraternidade, do multiculturismo e do relativismo cultural.
Existem sociedades em todo o mundo que fizeram do estúpido acto de pôr os outros a espera, algo tão vergonhoso para elas mesmas, como uma situação que presenciei um dia em que foi a casa de um certo senhor para quem trabalhava. Chegando a casa dele ele mandou-me bater a porta e entrar enquanto ia meter o carro na garagem. Pouco depois ele próprio abria a porta e entrava deixando-a aberta. E como era aquele um dia ventoso, irrompeu um vento forte e carregado de poeira porta adentro, que se espalhou por toda a sala, o que o irritou muito e o fez acusar as filhas de ter deixado a porta aberta, filhas essas, que sempre estiveram ao lado da mãe. A mulher olhou para ele e disse-lhe, a despeito da minha presença ali, que ele é que tinha deixado a porta aberta, e ele mesmo sabendo que era verdade negou, e olhando para mim disse peremptoriamente que tinha sido eu, mas uma das filhas, ressentidas pelas duras acusações totalmente descabidas do pai contra elas, simplesmente lhe perguntou:
— Como se Papá foi o último a entrar?
E ele calou-se e visivelmente embaraçado pela minha presença ali, apenas balbuciou:
— Deixem lá, deixem lá, eu vou fechar.
E enquanto fechava a porta ninguém pôde conter o riso e a sua filha de 5 anos de idade que estivera calada a observar inteligentemente toda aquela confusão causada pela mentira do pai e por um vento inoportuno, fazia-nos rir e embaraçava-nos ao mesmo tempo, porque ria muito alto com toda a liberdade do riso dos 5 anos de idade, ainda que contra o seu pai de 50, que tivera a infelicidade de justamente aquele dia trazer o seu funcionário a sua casa; e apesar de não nos ter feito espanto, vimos ele para fugir àquela cena toda, dizer revestido de toda a seriedade, que ía a garagem buscar a carteira que tinha esquecido. Mas assim que ele nos deu as costas vimos todos com grande choque a carteira que por estar bem recheada espreitava do seu bolso traseiro, aí deu-se uma explosão do riso. Rimos e rimos e rimos até que quando a senhora reparou que ele regressava pediu-nos sabiamente que parassemos, enfim, o acto estúpido de pôr os outros a espera é como uma mentira que contamos por cobardia, por medo ou por ma fé e que depois é descoberta e atirada a nossa cara.
Existem sociedades em todo o mundo que toleram, que incetivam, que praticam e que não combatem o atraso, e o que me dói, mas lá no fundo da alma, bem dentro do meu coração, é saber que a nossa é uma delas.
O jornalista quando terminou esta crónica sorriu e disse audivelmente:
— O parvo nem saberá que isto é dirigido a ele.
Gravou no seu aparelho portátil U.S.B, olhou para o relógio, eram 15 e 31, o editor já devia estar a chegar, chamou o garçon, perguntou se ele tinha um computador com impressora ali na pastelaria. O garçon hesitou, o jornalista meteu 50 Meticais na mão dele e passou-lhe o
— Este amarrotou os 50 Meticais com uma mão e pegou no U.S.B. com a outra. Disse algumas palavras ao colega, entrou no escritório da pastelaria e voltou de lá 10 minutos depois com o texto impresso que ele tinha protegido entre duas folhas A4 e escondido em baixo de uma bandeja com a qual passou pela mesa do jornalista para recolher o copo vazio, como exigem as suas funções, e para contrabandear as folhas impressas, numa dessas iniciativas de geração de rendimentos, e porque não: empreendedorismo, de que tanto falam os políticos.
A impressão era da melhor qualidade e até alguns arranjos em termos de apresentação do texto foram feitos.
O jornalista, visivelmente feliz, sorriu. Facto que foi notado pela dona do estabelecimento, que ficou feliz com a felicidade do cliente, e que logo que o viu, menos atarefado, chamou o garçon em causa, para dizer-lhe que é exactamente assim que ele devia trabalhar, fazer os clientes felizes, até porque o slogan da pastelaria não podia ser desmentido:
“Sente-se e divirta-se”
No entretanto, chegava o editor, com a mesma cara de embaraço, que é de se crer, tinha o homem mentiroso da crónica do jornalista. Eram agora 15 e 45, o atraso era de 1 hora e 20 minutos. Sentou-se na cadeira vaga da mesa do jornalista que não teve forças para o cumprimentar.
— Desculpe-me amigo.
Disse o editor da melhor forma que conseguiu, mas reparou que não tinha feito nenhuma impressão ao jornalista.
Chamou o garçon, nosso conhecido, que para deliciar a sua patroa, apareceu numa fracção de segundos, e isto só está um pouco exagerado, com as ementas e totalmente camuflado de boa educação. O editor pediu dois sorvetes: o mais caro de todos – servido numa taça, e um ordinário – servido num cone. Enquanto o garçon os foi providênciar o editor ensaiava a sua primeira explicação, logo interrompida com o regresso rápido do garçon cuja eficiência deliciando o editor deliciava ainda mais a dona do estabelecimento. O garçon gentilmente pôs a taça do lado do editor ao que este logo retrucou com um: “Na! Na! Na!” que chamou a atenção de todos por ter sido dito bem alto num tom de contrariedade, e com a maior das lisonjas, sendo aquilo que os brasileiros chamam puxa-saco, continuou quase gritando como fazem os políticos para as massas:
— A taça é para o meu grande amigo, este grande jornalista que apesar dos seus poucos anos já é uma referência para nós os outros, velhos e tão caducos como a nossa escrita.
O jornalista que ainda não proferira nem um único piu, deixou escapar um obrigado, recebeu a taça e deliciou-se, embora impassível, com aquele sorvete que se não elogiou foi porque esse seria um sinal de fraqueza.
O editor percebeu, sorriu, congratolou-se intimamente pela sua esperteza, pensou que já tinha recuperado a simpatia do jornalista e voltou a cumprimentá-lo:
— Boa tarde companheiro.
— Boa tarde! — Respondeu num tom de subtil ironia o jornalista.
— Vejo que está chateado. — Recomeçou o editor. — Mas eu tinha problemas, inadiáveis mesmo…
E expôs longamente uma dessas desculpas que contêm em si mesmas o seu perdão. É que ela era dita do alto dos 47 anos de vida a um jovem dos seus 21 anos, e há que ter em conta que o editor era um homem habituado a ser perdoado e a atribuir culpas a torto e a direito, e absurdamente ou não, ele era o primeiro a negar o perdão a esses mesmos erros que atribuía aos outros.
Após a demorada explicação pediu a crónica. Eram duas páginas. A sua primeira reacção foi de rejeição.
— Isto é muito grande, o espaço que reservei para ti só dá para meia página, talvez se publicarmos aos bucados, espero que isso não constitua incómodo meu jovem, além do mais, para quê ter pressa.
Foi então que ele reparou no título: “Horário Moçambicano”
Ficou aparvalhado, é que aquilo só poderia ser uma brincadeira de mau gosto, sentiu-se tão ofendido e tão paralizado ao mesmo tempo que o seu coração disparou. “Esta criança só pode estar a brincar comigo”, pensou no seu íntimo. Franziu muito o sobrolho, sentiu-se envergonhado e se a sociedade fosse regida pelos princípios católicos, ele era um homem totalmente absolvido, e com um perdão papal, é que ao mesmo tempo começou a sentir com todo o fulgor o sentimento de culpabilidade e experimentou o mais profundo arrependimento.
Leu o texto em silêncio durante uns 15 minutos, uma leitura pausada e séria, tossicando as vezes devido a saúde. O nosso jovem jornalista permanecia igualmente calado e sério, quem os visse porém, não teria dificuldades em reconhecer no jornalista o algoz e no editor a vitima.
Este quando acabou de ler apertou-lhe a mão e simplesmente disse-lhe:
— O teu texto sai inteiro amanhã. Peço-lhe perdão de todo o coração, era preciso eu ser um grande parvo para não perceber que o acabou de escrever e imprimir, é que os textos que escrevemos são como bébés paridos de fresco, ainda sente-se o sangue, ainda está quente, o cordão umbilical que o prendia a si acaba de ser cortado, e tu que o pariste, tu que és a mãe, ainda estás cansado da luta, e precisas daquele semana de repouso e de cuidados médicos delicados que segue um parto complicado.
Ora é muito simples perceber estás palavras emocionantes do editor, que acredito, emocionariam qualquer um. Diga-me caro leitor se não ficou emocionado. Oh! ‘Tadinho. Está emocionado com as palavras do editor! Essas palavras tão fofas, como se diz no vocabulário corrente.
A explicação é a seguinte: a uma semana atrás, ele assistira ao parto complicado da filha e pegara nas mãos o neto, ainda ensaguentado, quente, e com o cordão umbilical a acabar de ser cortado, segundo as suas próprias palavras. Esse momento não lhe saíra da cabeça, e depois de ler o texto, simplesmente lembrou-se disso e fez a associação, perdoem-me por favor o freudismo, é que as vezes é simplesmente irrisistível, além do mais o editor bem merece. Eu só me pergunto: será que os Psicanalistas de formação Freudiana são capazes de se emocionar com alguma coisa?
E continuou dizendo que ele também era vitima do mal da espera e contou em tom jovial e alegre, as muitas vezes que teve que ficar a espera. O jornalista amansou. No fundo o editor era boa pessoa.
Separaram-se mais amigos. A crónica apareceu em destaque, ocupando uma página inteira do jornal e até havia uma referência à ela na primeira página do jornal, bem lá no fundo, ainda que em corpo pequeno:
“E uma crónica sobre o Horário Moçambicano”
VII
Mas é desde cedo que começamos a esperar. Nove longos meses para nascer.
Podemos não considerar os primeiros 6 onde o nosso corpo começa a desenvolver-se, de ovo vai transformar-se em embrião e de embrião vai se transformar em feto.
Qualquer enciclopédia de medecina, qualquer tratado sobre o desenvolvimento do feto, ou sobre como chegamos ao mundo, vai dar estas informações, totalmente científicas e nem um pouco exageradas:
5º mês de gravidez:
O feto tem cerca de 25 cm de comprimento e 340 g de peso. Começa a ter os primeiros cabelos. Reage agora aos ruídos exteriores e movimenta-se com frequência, apesar de reservar algum período ao descanso.
6º mês de gravidez:
Mede 33 cm e pesa 600 g. Está ainda muito magro pois não existe acumulação de gordura. Já ouve a voz da mãe e sobressalta-se com ruídos repentinos. Também já faz algumas expressões faciais e de vez em quando dá socos, pontapés, cambalhotas e pode ter soluços e tosse.
7º mês de gravidez:
Mede agora 37 cm e pesa já cerca de 1 kg. Começa agora a acumular gordura. A parte do cerebro responsável pelo raciocinio já está bastante desenvolvida e por isso já reage a dor como um bébé nascido. A audição é quase perfeita e os olhos já se abrem. Está completamente formado. Começara a engordar um pouco mais. Já distingue a luz da escuridão, e o mais provável é que esteja já de cabeça para baixo.
Para que falar dos próximos dois meses. Apartir do sétimo mês, segundo a informação acima, o raciocínio já existe. O bébé ouve perfeitamente, já abre os olhos, ouve a voz da mãe, já distingue a luz da escuridão. A criança fica simplesmente ali especada a espera de nascer.
São dois meses, dois meses, é certo que continua a engordar, mais são dois meses a espera. Só me pergunto quais devem ser os seus pensamentos. Eu, quanto a mim, prefiro acreditar que ele fica a traçar mil e um planos de evasão. É pena que não nos fiquem memórias desse tempo. Dá socos e pontapés, claro, está cansado de esperar, o que ele quer é simplesmente sair, evadir-se, ver a luz.
Enfim, este é um caso clássico de espera.
VIII
Alguns meses depois de ter vindo ao mundo a pequena criança vai provar ainda do gosto venenoso da espera. E esta espera nos bébés com menos de um ano de vida, merece também a nossa singela atenção.
Para o bébé, ser abandonado pela mãe quando esta tem uma saída em que não pode levar consigo o seu pequeno, constitui um dos maiores tormentos.
É que o coitado conhece apenas a mãe, o pai e pouco mais. O mundo há-de ser para ele um grande vázio e o abandono da mãe é um vácuo no meio desse vázio, daí este ficar a espera desta duma forma que merece a nossa especial atenção.
Reparemos neste caso:
A mãe precisa ir ao supermercado, pede alguém para ficar com o bébé e diz que volta já, já. A primeira das dificuldades aqui é a fuga, que só é limitada pela inteligência da mãe. Há porém alguns casos padronizados:
As Fugas Caninas:
A mãe atira um brinquedo ou a chucha do bébé para uma distância de uns dois metros e diz carinhosamente:
— Querido! Vai buscar… Vai, Vai.
E enquanto o bébé faz a difícil marcha, gatinhando como um carro blindado, escalando tudo que aparece na frente, a mãe foge.
Quando o bébé finalmente consegue pegar no objecto e repara na ausência da mãe, começa a sessão de choro.
Há as fugas de Luta Livre:
Nestas, extremamente violentas, alguém pega no bébé que se debate inteiro com todas as suas forças, que afinal são surpreendentemente maiores do que era de prever, enquanto a mãe foge, ou segundo a óptica do bébé e pelos seus gestos, enquanto a mãe o soqueia, esmurra e pontapeia.
Quando a mãe difinitivamente já se evadiu, lá segue a sessão de choro. Há as fugas bem planeiadas.
A reclusa, ou melhor, a mãe, na maioria dos casos adormece a criança poucos minutos antes de se evadir, ou consegue montar em casa um enorme parque de diversões de forma que o pequeno diabinho não dá pela falta da mãe, e fica entretido a morder, bater no chão e quem sabe tentar inventar as suas primeiras ferramentas de trabalho para dominar o mundo como fizeram os primeiros homens milhares de anos atrás.
Está fuga caracteriza-se por não comportar uma sessão de choro, e requer muita esperteza por parte da fugitiva, ou melhor, da mãe.
Analisemos agora a sessão de choro.
É um verdadeiro espectáculo, e lamento profundamente a quem nunca teve a oportunidade de assistir a uma.
É artistíco, belo. Um perfeito encontro e confronto da criança com o vázio que ela questiona e define.
A quem veja nele um espectáculo humorístico, perdoem me a frontalidade, mas eu defendo que é de uma ignorância crassa quem confunde o dramatismo da sessão de choro de uma criança com um espectáculo humorístico.
Embora não me ache digno de tal honra descrevê-lo-ei:
A Sessão de Choro, que eu já pode observar diversificamente, consiste no choro da criança pela ausência da mãe, embora possam haver outras motivações, (são conhecidos os trabalhos da escola de Londres sobre as motivações extra Maternais da sessão de Choro).
Este choro ocorre por um período mais ou menos longo e apresenta pausas características, que constituem a sua beleza.
Ou seja, o bébé chora por um certo período e fica calado também por um certo período, alternativamente, até que a causa da sessão de choro desapareça.
Chora. Cala. Chora. Cala. Chora. Cala. Até que a causa da sessão de choro desapareça.
Não consigo ser mais explícito do que isso.
Os períodos intercalares entre os choros podem durar até uns trinta minutos, embora um cientista Filandês divulgou recentemente resultados de uma experiência em que o período vago – como é conhecido no mundo acadêmico – atingiu o marco de uma hora. Tendo a criança voltado a chorar, ainda na sequência da mesma sessão de choro.
A quem diga que os períodos vagos servem simplesmente para a criança ganhar alento para o próximo período de choro. Definindo muitas vezes a Sessão de Choro como o Ciclo do Choro. Mas devido as observações do cientista Filandês, esta crença tem vindo a cair em desuso.
É sempre vigente a crença, como foi avançado também pelos estudos de alguns cientistas chineses, que durante esse período a criança tem um espantoso diálogo com o vázio.
Uma equipe de pesquisa Moçambicana publicou recentemente um artigo num jornal cientifíco muito respeitado em que mostra a tradução para a linguagem humana mais evoluida, do monólogo completo de uma criança que estava no dialecto misturado de linguagem humana que os bébés falam:
“A criança está sentada no meio da sala, no chão e chora.
Período de transição entre o choro e o monólogo, a criança soluça. Cala-se:
— <<Estar na berço, eh,eh, a curtir, eh,eh nesta onda, eh,eh, do leitinho ,eh,eh.>> Excelente esta canção do primo Flávio, embora ele já articule mais palavras do que eu, é preciso admitir que ele tem um dom vocal íncrivel, uma voz lindíssima, adoro as músicas dele. Lembro o dia em que ele veio com a Tia Suzana e criamos a música: << As Minhas Fraldas Estão Sempre Limpas>>, foi muito bom, eu fazia as batidas. É íncrivel como toda a gente surge desta imensidade que me rodeia, as vezes fico a olhar para os lados a ver se aparece o primo Flávio. Acho que a Mamã há-de voltar agora. Talvez esteja deste lado, ou deste, ou atrás, não… eu quero Mamã, ihhhh…
E recomeça o período de Choro. Período de Transição.
Soluços. Cala-se:
— Estar aqui sozinho é uma grande seca. O vázio de não ter a Mamã comigo é uma coisa impressionante. Parece que o mundo vai todo se fechar sobre mim, acabar, e depois o silêncio cósmico que é o abandono. Até posso ouvi-lo. O abandono é na verdade uma das coisas mais
dolorosas que eu tenho sentido. É uma outra espécie de dor, não é como a dor de aleijar-me no pé que depois a Mamã esfrega e a Mamã, ihhhhh….
E recomeça o período de Choro. Período de Transição.
Soluços. Cala-se:
— Mas se formos a ver bem, o abandono é um mal maior em relação a dor. A dor é algo fisico, carnal, tem uma causa; ou porque escorreguei, ou porque bati-me com o brinquedo. Na dor há sempre uma explicação, e isso até acaba reduzindo a dor da dor. É íncrivel como a dor da dor pode ser reduzida se soubermos o que a causou e se formos capazes de ver essa causa. Agora o abandono é diferente, eu não vejo a causa do meu abandono e se eu for a ver bem até seria uma exclusão da hipotese de abandono se eu estando abandonado pudesse ter presente quem me abandonou. Nesse caso, como é óbvio, eu não teria sido abandonado pela Mamã, se eu estivesse ao lado da Mamã, ihhhh….
E recomeça o período de Choro. Período de Transição.
Soluços. Cala-se:
— Repara numa coisa: eu poderia estar a fazer alguma coisa agora mas não estou. Portanto o abandono traz consigo um estado de inação, e a esse estado de inação chamamos espera. A espera é uma sensação por mim muito bem conhecida. Isso faz-me lembrar os tempos em que eu estava confinado a um espaço exíguo, pouco antes de nascer. Eu esperava por algo que eu desconhecia totalmente: o mundo, porque não fazia sentido viver confinado àquele espaço exíguo, isso era evidente, uma afirmação que se autovalidava. A espera é contudo um sentimento muito chato, repara em mim, eu não passo de um bébé, tudo em mim é pequeno, tudo bem que sou muito giro, mas não passo de um bébé, e o que me espera como tal: a espera. Esperar é o destino de um bébé, pela hora do almoço, pela hora do banho, que vida! Se a Mamã por exemplo, Mamã… ihhhh….
E recomeça o período de Choro. Período de Transição.
Soluços. Cala-se:
— Uma das melhoras coisas da espera é que podemos cultivar a nossa própria personalidade, e para mim o ego e a aparência constituem o tudo. Repara que eu por exemplo sou muito exibicionista, não tenho medo de o dizer, a divulgação é a alma do negócio, quanto mais me exibo mais presentes ganho. A prima Neyze, por exemplo, não vê as coisas bem assim e ela tem a minha idade, é muito tímida, eu já lhe disse, sorri e acena prima, que toda a gente gosta. E eu sou muito crítico em relação a presente exclusão social do bébé fora do seio familiar,
fiquei espantado quando o primo William contou-me que em certos países os bébés tem associações e até… Mamã.
A chegada da Mãe põe fim ao monólogo e a Sessão de Choro, fora da qual o bébé perde grande parte das suas faculdades pensantes e fica totalmente entregue a sua mãe. Nós acreditamos que o fenómeno da espera produz uma actividade anormal no cerebro do bébé, e lhe dota de uma inteligência acima da média.”
IX
Uma das esperas mais prementes e difícies, é a que todo o homem tem de fazer por causa de uma mulher, e isto só no caso de ser um sortudo, porque normalmente, tem de esperar por todas as mulheres envolvidas no que vai fazer.
E homens de todas as idades e condições são vitimas.
Quantas vezes nós atrasamos a um concerto, ou ao cinema quando vamos acompanhados por uma mulher.
Eu incluo-me nesta lista de vitimas do capricho feminino, porque muitas vezes não passa disso. Lembro de um amigo que me dizia que as mulheres arrumam-se e fazem maquiagem até quando vão ao salão de beleza, e são capazes de coisas tão absurdas como colar um adesivo branco na testa, sem que estejam feridas, só para combinar com a saia se esta for também branca. São capazes de pintar as unhas ainda que nalguns casos estas sejam muito curtas, da cor do cabelo, ou da cor do seu tom de pele ou até da roupa interior, que embora ultimamente haja uma tendência contra, normalmente fica escondida, enfim, as mulheres perdem o nosso precioso tempo a arrumarem-se com bagatelas como aneis, colares complicadissimos em praticamente todas as partes rotundas do corpo, e acredito que teriam um desses objectos no pénis se o tivessem, havia de ser engraçado vê-las enfeitar o orgão reprodutor masculino, mesmo que o pudor não as permitisse exibi-lo em público.
As mulheres perdem o nosso precioso tempo a dotarem-se de uma beleza, de um charme e de uma graça, que nós os homens só estamos inteligentemente equipados para perceber uns 30 porcento, sendo os restantes 70 pertencentes ao domínio da beleza não visível; e tem um ego tão alto que se satisfazem completamente quando conseguimos perceber míseros 10% do seu esforço de horas ociosas.
É incrivel como a maquiagem não depende da beleza de uma mulher, mas antes do seu ego e é com essas ninharias que elas nos fazem perder uma boa parte do nosso rico tempo.
A acrescentar a tudo isto há a timidez.
Só abatendo a timidez da mulher o sexo masculino poderia economizar um bom tempo. Esse desbate da timidez feminina tem sido uma das maiores conquistas da raça humana. Ao longo dos séculos temos conseguido felizmente torná-la cada vez menos timida. É que perdemos muito tempo para cair nas boas graças de uma mulher que realmente valha a pena, tanto como esposa, tanto como futura mãe dos nossos filhos. E eu não consigo compreender como uma mulher que passou horas a arrumar-se e fez os maiores esforços para colocar o seu vestido mais justo só para estar deslumbrante diante do pretendente que ela ama perdidamente, hesite durante
tanto tempo para dar provas desse amor, algo tão simples como um beijinho ou um abraço carinhoso.
Ou mesmo dois.
Até podem ser ilimitados.
A vida é longa, mas acaba, e não compreendo como as mulheres são capazes de nos fazer perder tanto tempo.
As mulheres são sem dúvida na sociedade humana, as maiores causadoras deste fenómeno de que nos ocupamos: a espera.
Não faz muito tempo eu fiz circular em folhetos entre vários amigos e amigas algumas destas reflexões sobre a espera causada pelo sexo feminino, que eu apesar de ser obrigado a negar pela grande população deste sexo, afirmo como Galileu o fez em relação a terra e perante a igreja católica:
“E Contudo gira”, e contudo é, e é, e é a maior causadora da espera.
Mas enfim, continuemos, o texto acima foi parar no escritório em Maputo da “Associação das Mulheres Feministas com Charme”, que tem sede em Paris.
Até onde vão as amizades! Esta Associação tem como slogan: “Capemos o Bicho do Homem”
Recibi a carta de Paris, pouco antes de entrar na casa de banho e aqui a reproduzo para exemplo de outros narradores, não a ditadura, respeitemos as opiniões alheias contrárias a nossa narração, toleremos a diferença mesmo quando aquilo que mais amamos esteja em causa:
Associação das Mulheres Feministas com Charme de Todo o Mundo
(E é de todo o mundo mesmo, porque onde há homem, há machismo e onde há machismo
nós estamos)
“Capemos o Bicho do Homem”
Paris, Rua das Mulheres. A Governadora,
(N.B.: equivalente a Presidente, palavra banida do nosso vocabulário por não ter feminino.)
Primeiro dizer que nós estamos fartas de machistas como o senhor que só vem as coisas de um ponto de vista masculino. Já que o senhor tem feito reflexões sobre a espera porquê por exemplo não falou da espera no cabelereiro? Porque cabelereiro é coisa de mulher, é claro. E porque o senhor acha que aquilo que tem haver particularmente com as mulheres não tem valor para ninguém. O mundo é dos homens, para os homens e a mulher é só um objecto de prazer e recriação e sempre que aparece referida nunca pode ser de um ponto de vista feminino.
Para os homens como o senhor, as coisas ou são unisexo ou não tem importância. Onde está a igualdade de direitos, trancada numa das gavetas de um dos escritórios da sede das nações unidas?
Eu vou fazer-lhe o favor de falar da espera no cabelereiro:
Ir ao cabelereiro é dos maiores atentados a saúde e ao bem estar de uma mulher. São dores de cabeça, é o pescoço, as costas ou mesmo os pés.
E o aborrecimento de estar ali sentada, a fazer nenhum, e com a nossa cabeça a ser o mais literalmente possível tratada como um objecto, as vezes durante horas, e todas as reclamações que possamos fazer são simplesmente inúteis porque os cabelereiros tem lá os seus metódos que consideram inquestionáveis.
Quando lhes dizemos por exemplo:
— Estás a puxar muito.
Eles param de puxar por menos de um minuto e depois voltam a puxar da mesma forma e as vezes até com mais força como que por maldade, e quando voltamos a reclamar lá ouvimos aquela frase que faz calar a boca de todas nós:
— Queres ficar bonita ou não.
Haverá mais alto sacrifício prestado a beleza?
Uma reunião de mulheres com penteados decentes não difere de uma reunião de sobreviventes de um massacre ou de um holocausto. São reclamações e denúncias que não acabam. Uma autêntica conspiração contra os cabelereiros, e tudo murmurado, não vão eles ouvir e piorarem como castigo.
Tal é o vilanismo deste personagem.
O cabelereiro é tão maldoso que se alguém o acusasse de bruxaria nenhuma mulher contestaria.
E se há uma coisa que é preciso pagar bem a um cabelereiro para fazer, é ouvir conselhos. Os cabelereiros são presumidos de profissão.
O único momento sincero de uma mulher que vai a uma festa de gala com um penteado sacrificado, é quando está reunida com outras mulheres que não sejam rivais. É aí onde ela mostra e fala dos seus tormentos: se são as costas que doem é aí onde ela perde a pose e verga-se sobre a dor longe do olhar dos homens elegíveis e das rivais por quem sacrificamos o corpo, a alma e o resto.
E há tempos em que a sessão fica parecida com um encontro de veteranos de guerra.
São as cicatrizes e os defeitos causados por um produto de beleza, são os pontos da cabeça e do corpo onde há estranhamente uma dor contínua, enfim, é uma verdadeira mostra de bravura.
E é preciso compreender isto das rivais.
Uma rival não é necessariamente uma inimiga. Pode ser uma prima, até uma irmã.
Esta rivalidade é uma espécie de espiríto de competição que nós mulheres temos, mas claro sempre fazendo um jogo limpo. Se não existisse esta concorrência entre nós mulheres, a moda não seria tão dinâmica como tem sido ao longo dos séculos, a beleza feminina seria uma monotonia e os homens ficariam enjoados das mulheres. Esta concorrência é uma espécie de procura da originalidade na nossa beleza, na nossa forma de ser, na nossa forma de encantar os homens e irritar ou deixar com inveja as nossas rivais.
É preciso também esclarecer-lhe uma coisa:
Nós mulheres somos seres totalmente sensíveis a beleza, é por isso que levamos horas a fazer maquiagem, a pintar verniz com cores que nos identifiquem, a coleccionar colares, braceleiras, missangas e brincos. Se não fossemos tão belas e tão sensíveis a beleza, não haveria
amor neste mundo, e portanto não haveria paz, a música nunca chegaria ao coração, não passaria dos ouvidos dos homens.
E o senhor diz que nós as mulheres fazemos os homens perderem tempo porque somos tímidas! Vocês homens é que não nos compreendem. Nós nos fazemos de tímidas para que os homens reconheçam o nosso valor. Nós não somos guerra para vocês irem ao ataque. Nós somos o vosso paraíso, por isso vocês devem vir com pensamentos puros.
É um teste que nós vos fazemos.
E depois se para vocês homens praticamente toda a mulher serve, nós as mulheres temos que esperar pelo homem ideal, que realmente se importe connosco, pelo nosso Príncipe Encantado. E um homem desses é infelizmente muito raro.
Agora diga-me, quem tem de esperar mais?
P’la Maria João, mais conhecida por Mata Cobras.
Eu, sinceramente, fico todo arrepiado e espero nunca me avistar com a Sra. Mata Cobras.
E imaginem se ela aparecesse-me agora que estou com as calças baixadas.
X
Permita-me Leitor que eu me aconchegue melhor no comfortável assento da minha pia para lhe falar da melhor maneira de uma das esperas que mais me tem vitimado: A espera na escrita.
Imagine sobre uma mesa um papel em branco e um escritor num dos seus momentos de criação menos fecunda, a escrever, coincidentemente, embora haja nisso um propósito, sobre a espera na escrita:
A espera na escrita constitui uma das esperas mais
— O que eu queria mesmo dizer? Qual é o termo, é-me difícil encontrar uma forma de descrever esta espera, ora bem, vejamos, há várias palavras que expressam algo que nos enlouquece e ao mesmo tempo nos aborrece, enraveicendo-nos simultaneamente.
— Usa desgostosa
— Uma espera desgostosa? Onde já viste uma espera desgostosa?
— Vem da palavra desgosto, algo sensaborrão, enfim, algo matreco. Até melhor, usa matreco.
— Só podes estar a gozar! Eu não vou escrever a palavra matreco no meu livro! Pensas que eu estou aonde?
— Calma, isso é Realismo.
— E tu achas por acaso que eu estou nos finais do século XIX ou nos princípios do XX para escrever coisas Realistas. A palavra matreco não me agrada, não tem estética.
— Se nos limitassemos a escrever palavras com estética tu achas mesmo que seria possível a literatura?
— A palavra matreco é grosseira, estúpida e baixa e eu nunca em sá consciência a usaria numa obra impressa.
— O texto impresso!
— é outra coisa, sabes, é o texto parido.
— Mas voltando ao nosso assunto, já que não aceitas Matreco, que tal… enfim… ahhh…
Merda. Poderiamos de mansinho, sem ser grosseiros dizer:
A espera na escrita constitui uma das esperas mais A espera na escrita constitui uma grande Merda
Está bom se quiseres excluiamos grande e ficava tão simples e eficaz como isto
A espera na escrita constitui uma das esperas mais
A espera na escrita constitui uma grande Merda A espera na escrita é uma Merda
Curto e Grosso, como a vida
— Ouve cá meu grande filosofo, tu estás louco. A palavra merda no meu livro! Um livro com a palavra merda é um livro com merda, é um livro de Merda.
— Tu és muito antiquado, muitos escritores modernos usam confortavelmente a palavra merda nas suas obras, e até alguns escritores antigos. Por exemplo tu sabes quantas vezes a palavra merda aparece no…
— Não me interessa, não me interessa! está bem que a espera é uma merda, mas dizê-lo…
— Então admites que a espera é uma merda! Tu é que és uma merda. Mas sempre temos a palavra porcaria:
A espera na escrita constitui uma das esperas mais
A espera na escrita constitui uma grande Merda A espera na escrita é uma Merda
A espera na escrita é uma Porcaria
— Qual é a diferença entre merda e porcaria?
— É que a merda refere-se a mais alta digenera…
— Eu não pedi que me explicasses a diferença entre merda e porcaria!
— Pediste.
— Não pedi.
— Perguntaste-me.
— Não Perguntei.
— Companheiro, tu perguntas-me qual é a diferença entre merda e porcaria.
— Já ouviste falar de perguntas de retórica? Aquelas que não requerem resposta? Onde tu estavas quando eu estudava a retórica e a eloquência?
— Diz-me uma coisa, essa pergunta que me colocaste agora, é uma pergunta de retórica?
— Pode ser e pode não ser.
— É e não é.
— Bem, depende dos casos.
— Melhor seria dizer da tua vontade.
— Mais ou menos.
— Tu não sabes que uma mesma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo? Onde estavas quando eu estava a estudar a Lógica?
Não precisas responder, é uma pergunta de retórica.
— Gostei dessa!
— Tu sabes como é, eu sou o teu lado mais inteligente, moderno e giro, cute.
— Isso é um estrangeirismo, um anglicismo.
— Maningue.
—Outro estrangeirismo.
— Maningue não é um estrangeirismo. É uma palavra que já faz parte do nosso vocabulário Moçambicano. Tu enjoas-me com esses teus purismos não me toques.
— Maningue não faz parte de nenhum Dicionário da Língua Portuguesa.
— Quem te garante, ó sabichão, leste por acaso todos os Dicionários de Português? Até os Portugueses dizem maningue.
— Isso prova que a língua Portuguesa só tem um dono, “o Camões”
— C’est ne pas possible.
— Não acredito que te diriges à mim em Francês, ainda por cima sem colocar o teu dito entre aspas.
— Hei, espera aí, como sabes que eu não coloquei aspas?
— Se as tivesses colocado terias mudado o teu tom de voz.
— Vous avez raison
— Queres parar com o Francês?
— Porquoi mon ami.
— Parce qui, ou melhor.
— Apanhei-te, em flagrante delito, e sem aspas é “fantastique”
— Um galicismo. Tu achas que os Franceses falam “Lusocismos”, permita-me o neologismo.
— A vontade. Meu carissimo, o Português não é nossa língua, nós simplesmente a importamos, portanto, deixa que os Portugueses batam-se por ela. Quanto a nós, temos mais que usar, abusar e arrasar, como fizeram os brasileiros. Você percebe, eu não estou te sentindo não.
— Ia. Percebi. Sabes, tens toda a razão, temos mais que integrar a língua portuguesa no nosso meio social, aculturá-lo.
— Ladrão! Vais pegar na minha ideia, juntar-lhe um par de palavras bonitas e assumí-la como tua.
— É a recompensa que ganho por te aturar.
— Então, já tens uma ideia, repara que a página está praticamente em branco, olha o que escrevemos até agora:
A espera na escrita constitui uma das esperas mais
A espera na escrita constitui uma grande Merda A espera na escrita é uma Merda
A espera na escrita é uma Porcaria
Nada,
retomemos o ponto de partida:
A espera na escrita constitui uma das esperas mais
A espera na escrita constitui uma grande Merda A espera na escrita é uma Merda
A espera na escrita é uma Porcaria
A espera na escrita constitui uma das esperas mais
— Tsonanas
A espera na escrita constitui uma das esperas mais
A espera na escrita constitui uma grande Merda A espera na escrita é uma Merda
A espera na escrita é uma Porcaria
A espera na escrita constitui uma das esperas mais tsonanas que existem.
— Brilhante! É uma excelente inovação linguística.
— Obrigado. Não me lisonjeies tanto, afinal é o que eu faço, penso e…
— Como tens coragem! Seu desgraçado, juro-te, se não fosses eu…
— Continuemos.
A espera na escrita constitui uma das esperas mais
A espera na escrita constitui uma grande Merda A espera na escrita é uma Merda
A espera na escrita é uma Porcaria
A espera na escrita constitui uma das esperas mais tsonanas que existem. O escritor tem as vezes que suportar várias horas de improdutividade e reflexão sobre a página em branco. Durante este período da espera da proxima palavra, da proxima linha, da proxima página, o escritor fala consigo mesmo, dá voltas sobre o seu local de trabalho, como se
estivesse preso a ele, faz os rituais de escrita e de inspiração mais diversificados, os quais muitas das vezes não se diferem aos gestos e comportamentos de um débil mental, e, e…
— E que mais?
— Bate com a cabeça na parede.
— Sinceramente…
— O quê…?
— Já viste alguém bater com a cabeça na parede?
E o ciclo repete-se. O diálogo interior não pára sobre a folha agora meio escrita.
XI
A inspiração é uma palavra, para usar uma imagem tirada do mundo da informática, comprimida.
Quando a descomprimimos o que encontramos: Um indivíduo a espera.
A espera de novas ideias para construir a sua arte.
Assim, o nosso indivíduo fica a espera da ideia que ele procura, que tem de viajar, quem sabe, do mundo das ideias de Platão até ao nosso mundo real. E esse mundo das ideias do filosófo Grego deve ficar bem longe do mundo em que nos encontramos. E é de notar que algumas ideias viajam com menor velocidade em relação a outras. E deve haver vezes em que o mundo de Platão engana-se na ideia a enviar ao nosso mundo, porque há vezes que trabalhamos sobre uma ideia que simplesmente não dá fruto. Algo por exemplo tão estéril e tão sem futuro como falar do mundo das ideias de Platão.
E é assim como a inspiração constitui a única e portanto, podemos acrescentar, e mais genial demonstração de uma teoria do filosófo grego Platão.
E é certamente a minha falta de inspiração que faz com que este capítulo seja tão curto. E deve ser também a minha falta de inspiração que me leva a dizer que este capítulo é muito curto. Até porque, sinceramente, já não tenho nada a escrever sobre a falta de inspiração, e é engraçado eu ter ficado tanto tempo a procurar em vão inspiração para falar da falta de inspiração. Deve ser um castigo que a inspiração inspirou-se em dar-me. Sabe meu caro leitor, sinto-me impotente diante de si. A inspiração é algo como a potência masculina, quando vai abaixo destrõe a reputação de um homem e o seu orgulho, e olha que o orgulho de um homem é uma coisa difícil de destruir. Eu como narrador desta saga, desta grande saga, sinto-me simplesmente impotente para escrever mais uma única linha que seja sobre a inspiração. Pudesse eu pedir-lhe segredo, mas o que adianta, sei que não guardará mesmo. A inspiração traiu-me. Cobardemente. Vilmente.
Ah! Ah! Ah! Leitor, por favor diga-me que não caiu na história do paragráfo acima. Ele era simplesmente para aumentar o tamanho do presente capítulo.
Parece que o capítulo ainda está muito curto! O que eu faço agora. Leitor, não acredite no paragrafo acima, ele é falso. Tudo o que eu disse sobre a minha falta de inspiração é verdadeiro. E tudo o que eu disse sobre a falsidade da minha falta de inspiração é falso. Ou seja a verdade da falta é verdadeira e a falsidade da falta da falta é falsa. A verdade é muito verdadeira,
excessivamente até. A falsidade é uma falsificação. Da verdade como é lógico. E isso não é falso. Acho que fui explícito. Claro como água da fonte. Água da fonte, fonte de inspiração. É interessante que a fonte de inspiração desta minha dissertação é precisamente a falta de inspiração e portanto de uma fonte de inspiração. Eu poderia ficar a fazer isto ao longo de páginas e páginas e o leitor a espera. Mas isso até é bom, assim o leitor que tem esperado pouco ao longo da sua vida, se é que isso é possível, sente a espera na leitura. Mas caro leitor, relaxe, uma vez que basta olhar um pouco para baixo da presente página consegue ver o inicio de um outro capítulo, quer dizer que eu já devo estar a acabar este discurso louco sobre a falta de inspiração.
XII
Mas não acabei. Eu quero que o leitor sinta a espera. Estas reflexões são didácticas. É necessário que o leitor sinta a espera para saber que ela é uma coisa má, assim não sairá por aí a deixar as pessoas penduradas. Não, não é isso que eu pretendo transmitir aqui. Além do mais, não se esqueça de uma coisa leitor, eu também estou a espera. Os meus negócios de estado ainda não estão concluidos. É até justo que eu o faça esperar. Sente o vázio leitor? Em vez da saga continuar, o narrador simplesmente decidiu fazer uma pausa prolongada para se ocupar das suas dores intestinais, enquanto o leitor espera por ele. Isto é de uma crueldade impiedosa. Mas, como eu não sou tão cruel, apesar de tê-lo totalmente dependente de mim para a conclusão desta importante saga da espera, eu vou continuar, e agora sem brincadeiras, no nosso assunto gravissímo.
XIII
A política merece também a nossa atenção.
Para tal analisemos uma palavra chave para perceber, interpretar e exercer a política: A Promessa.
Essa é outra palavra comprimida.
Quando descomprimimos a palavra promessa corremos um grande risco: o risco de encontrar dentro dela todo o mundo ou toda a humanidade a espera de um único político.
E, sejamos realistas, de um político competente porque exerceu a sua função: prometeu.
E esta coisa de política, por estar tão ligada a espera, merece uma ánalise filosófica que venha realmente deitar alguma luz e compreensão sobre o tema. A diferença entre as profissões da espera: a de político e a de segurança, é que o segurança tem muitas vezes como verdadeira profissão esperar, e o político tem ainda mais vezes como verdadeira profissão, fazer esperar.
Principiemos a nossa ánalise: O Político
O Político atravessa três fases:
Na primeira fase ainda não é tecnicamente um Político, é uma Promessa. Por exemplo: O candidato a Político diz:
— Se eu for eleito construirei um hospital.
O povo vota, mas não no candidato, na promessa da construção do hospital.
A segunda fase é a fase da Metamorfose. Nela a Promessa eleita se transforma num Político que talvez por hereditariedade faz Promessas.
— É nesta fase que ele diz: a construção do hospital iniciará em Novembro.
…Nas proximidades de Novembro:
— As obras foram adiadas para fevereiro devido ao concurso para as empresas de construção que vão construir o hospital.
…Nas proximidades de Fevereiro:
—As obras só vão iniciar em Setembro, data em que já estarão disponíveis os fundos do cofre do estado.
E assim sucessivamente.
A Terceira Fase tem duas vias:
Na primeira o Político já não consegue mais fazer promessas e é diagnósticado de corrupção, doença altamente contagiosa e mortifera, reduzindo a esperança de vida de quem a contrai no poder, apesar da existência de antiretrovirais de difícil acesso que são importados de algumas superpotênciais mundiais, estes antiretrovirais ajudam o doente, apesar da gravidade da doença, a continuar no poder. As superpotências contudo negam a venda e a comercialização destes produtos, altamente saudáveis ao político corrupto.
Na segunda via o Político rejuvenesce ou renasce transformando-se de novo em Promessa. Este é um procedimento muito dispendioso, apesar de não acaretar riscos de saúde, nele o político tem mesmo que construir um hospital e prometer uma escola ou uma estrada.
Há contudo uma alternativa mais barata, portanto, mais usada. Esta consiste em construir metade do hospital e prometer a outra metade para depois das eleições, e aqui joga também a influência da população que se tendo habituado aos benefícios de uma metade chega a conclusão óbvia de que terá mais benefícios quando tiver sido construida a outra metade.
E o processo repete-se.
Um excelente Político que consiga fazer a segunda via da terceira fase várias vezes, pode, por exemplo, se tiver fortes noções de economia e direito, fazer render o dinheiro do Estado e aplicá-lo em benefício próprio nas mais diversas regiões do Mundo, que lhe oferecerão todas as facilidades e conselhos de como aplicar melhor esse dinheiro, visto que saem sempre a ganhar com isso.
Eu tenho estado a pensar em publicar estas reflexões sobre a Política com o título: “O Presidente”. E acredito que se constituissem um livro, esse livro seria um dos mais vendidos do planeta, e seria um clássico da economia política. Estudantes de direito, principalmente na área da advocacia, fariam dele o seu livro de cabeceira e talvez o meu nome seria transformado num advérbio e num adjectivo com equivalente em todas as línguas. Eu não sei, talvez esse seja um plano Maquiavélico, será que é mesmo um plano Maquiavélico. Eu acho que essa palavra descreve todo o diabolismo desse meu plano. É, é Maquiavélico.
XIV
todos.
Ao longo da nossa vida não faltaram motivos de espera. Esperaremos por tudo e por
Esperaremos pelo evento que se aproxima, por uma data, pelas nossas férias, por um
melhor emprego, pelo final do nosso curso, pela liquidação total de uma dívida, pela conclusão de um projecto, por um melhor estado das coisas.
Por um super governo, pelo fim das grandes desigualdades, pela independência total e completa de Moçambique e de África, pela Justiça que tarda, pela esperança quando a tivermos perdido.
Pelo sinal verde no trânsito, pela água fervida da chaleira posta ao lume, pelo restabelecimento da energia elétrica cortada a meio do nosso programa televisivo favorito, para que a mosca se afaste deixando-nos finalmente em paz.
Pelo dissipar do mau cheiro quando tivermos soltado gases, pela chegada de quem tem a chave de casa quando tivermos esquecido a nossa, pelo fim de um discurso quando já percebemos a sua essência, pelo elogio e o reconhecimento quando o merecermos.
Pela captura dos nossos inimigos até quando formos o presidente dos E.U.A, pela desatenção de todos quando tivermos arrotado, pelo almoço pronto nos dias em que este estiver atrasado, pelo perdão quando errarmos.
Pela atenção dos demais quando estivermos a falar, pela contestação do acusado quando tivermos provas, pelo transporte quando nos dirigimos ao nosso local de trabalho, pela paz quando estivermos a construir bombas atómicas.
Pelo dinheiro para tudo, pela oportunidade para finalmente agir, por um incêndio para comprarmos extintores de fogo, pela novidade para divulgá-la, pelo fim das nossas amarguras e dos nossos receios enquanto nos entupimos de álcool.
Pelo sono quando quisermos dormir, por respostas de quem as deve dar ainda quando já as conhecemos, pelo toque para o recreio, pela queda do orgulho do outro para derrubarmos o nosso.
Para que um cretino qualquer que se pôs a falar no cinema em pleno filme se cale. Ao longo da vida, no decorrer da vida.
Vamos esperar sentados, de pé, ao telefone, em frente a um monitor, num elevador, dentro de um armário, no meio de uma multidão, em cima de uma árvore, debaixo de uma cama. Lendo um livro.
XV
E eu sou o primeiro homem, ou no minímo, um dos primeiros, que não sentiu nem um pouco o aborrecimento e o vácuo social de uma das esperas mais aborrecidas: A Ida a Casa de Banho para tratar negócios de estado.
O leitor esteve comigo durante este tempo todo, na minha casa de banho, a fazer-me companhia.
É um facto histórico este em que o leitor participou, não me leve a mal por favor. Há destas coisas na história:
Milhares acompanharam o discurso da Proclamação da Independência de Moçambique, mas só um a proclamou, assim, milhares de vós acompanharam a minha ida a casa de banho mas… enfim acho que o leitor compreende.

Stélio Inácio
Livro humorístico de 2007